Minha Amada Imortal – meine Unsterbliche Geliebte

Carta Beethoven

Minha esposa tem especial carinho pelo músico alemão Ludwig van Beethoven e a Sinfonia n.9 – baseada no poema “An die Freude” (À Alegria), ode escrita por Friedrich Schiller em 1785. Para ela, se Beethoven tivesse vivido apenas para compor a Sinfonia n.9, concluída em 1824, isso por si só já teria bastado para que seu nome ficasse gravado na história da música.

Ainda que eu tenha preferência por W. A. Mozart, preciso concordar, sem dúvida alguma, a Sinfonia n.9, “A Nona”, é uma das mais espetaculares composições musicais já criadas pelo homem. E por um gênio que naquele momento estava completamente surdo. Dá para imaginar angustia maior do que a de um compositor não poder ouvir sua obra-prima?

Bom, o assunto deste post não é a Sinfonia n.9, mas uma carta. Uma carta de Beethoven.

Até a terceira década do século 19, quando o norte-americano Samuel Morse construiu o primeiro protótipo funcional do telégrafo, não existia outro nem mais comum meio de comunicação entre duas partes distantes do que a correspondência por carta.

E uma das cartas mais famosas e enigmáticas da história envolveu exatamente Ludwig van Beethoven e uma, até hoje, ilustre desconhecida. Uma carta de amor. “Mein Engel, mein alles, mein Ich” (Meu anjo, meu tudo, meu eu), escreveu ele.

A carta ficou conhecida por “meine Unsterbliche Geliebte” (Minha Amada Imortal), a referência usada por Beethoven para designar a destinatária secreta. O documento foi encontrado após a morte do músico, em 1827, juntamente com o “Testamento Heiligenstadt”. É composto de duas páginas duplas escritas em ambos os lados (oito páginas), de aproximadamente 20 x 23 cm e em uma única folha de aproximadamente 20 x 12 cm, também escrita em ambos os lados. Ao todo, um documento de dez páginas manuscritas pelo próprio Beethoven em uma espécie de carta-diário. As páginas tem os dias 6 e 7, terça e  quarta-feira, mas não há indicação de ano.

A carta foi escrita a lápis e uma análise cuidadosa, realizada posteriormente, constatou que determinadas palavras foram realçadas, também a lápis, numa tentativa de torná-las mais legíveis. O autor do “reforço” é sem dúvida Anton Schindler, que usou parte da carta em fac-símile na terceira edição de sua biografia sobre Beethoven.

Embora algumas teorias tenham surgido ao longo do tempo e até um filme tenha sido produzido por Hollywood com a história do romance, a verdade é que a real identidade da “Amada Imortal” permanece um mistério.

Em 1840, Schindler datou a carta como sendo de 1806 – um dos anos em que 6 de julho caiu em uma terça-feira; os outros anos foram 1807, 1812 e 1818. Só em 1909, Wolfgang Thomas San-Galli e Max Unger dataram a carta como sendo de 1812, escrita no balneário de Teplitz, na Boêmia.

Betthoven viajou de Viena até Praga e, dali, através de um caminho tornado penoso pelo mau tempo, até Laun, Bilin e Teplitz, onde chegou em 5 de julho. A carta foi postada no dia 9 e chegou a 11 de julho em “K”, que hoje sabe-se tratar do balneário de Karlsbad.

A primeira suspeita recaiu sobre Giulietta Guicciardi (1782-1856).  Mais tarde, em 1866, Alexander Wheelock Thayer afirmou ser Therese von Brunswick (1779-1821) a “Amada Imortal”.

Em seu diário, Beethoven usava as iniciais “A.” ou “T.” (nunca nomes completos) cada vez que se referia àquela mulher de quem dissera a Ferdinand Ries, em 1816: “Encontrei uma única mulher que, sem dúvida alguma, nunca possuirei”.

Em 1977, Maynard Solomon afirmou que a desconhecida seria a cunhada de Bettina Brentano (1785-1859), que também esteve entre as suspeitas, Antonie von Birkenstock (1780-1869), a quem o músico dedicaria, em 1823, 33 Variações sobre uma Valsa de Diabelli, e que era casada, desde 1798, com o banqueiro Franz Brentano (1765-1844). Em seu diário, Antonie escreveu: “Não quero deixar que meu marido perceba o quanto é difícil para eu viver com ele, que é sempre tão carinhoso e tão amigo.” Ela conhecera Beethoven em maio de 1810, em uma visita junto com Bettina à casa do compositor.

Os registros policiais em Karlsbad indicam que os von Birkenstock chegaram a cidade em 5 de julho de 1812Beethoven chegou em 25 de julho, hospedando-se na Auge Gottes auf de Wiese, 311, onde também estavam os Brentano, permanecendo ali até o final de agosto. As datas se ajustam, mas e as inciais? A. e T.?

O “A.” obviamente serve ao nome Antonie, mas e o “T.”? Alguns aventaram a ideia de que a letra indicaria “Therese”, de Therese von Brunswick; mas o A. nesta caso não fazia sentido.

Solomon levantou a ideia de que o “T.” referia-se ao diminutivo de Antonie (“Toni”). Assim, tanto o A quanto o T se encaixam em Antonie von Birkenstock. Em seu diário, Betthoven escreveu que estivera apaixonado por uma mulher casada “com um homem de muita distinção, embora não de nascimento nobre”, o que corresponde perfeitamente a Antonie von Birkenstock, filha do conde Johann Melchior von Birkenstock, e a seu marido, proveniente da burguesia.

Bom, deixemos que o próprio músico fale por si, sobre seu amor e sua “Unsterbliche Geliebte”…

Por Rodrigo Trespach – www.rodrigotrespach.com

Abaixo alguns trechos da carta traduzidos do original; para ler o original em alemão, acesse o site da Beethoven-Haus ou a transcrição com comentários no site da instituição alemã.

***

Manhã de 6 de julho [de 1812]

Meu anjo, meu tudo, meu ser. Apenas algumas palavras hoje, à lápis (o seu). Até amanhã, a minha morada estará definida. Que desperdício de tempo. Por que [sinto] esta tristeza profunda quando a necessidade fala? Pode o nosso amor resistir ao sacrifício, em não exigir a totalidade um do outro? Pode mudar o fato de que você não é toda minha nem sou todo seu? Oh, Deus! Olhe para a beleza da natureza e conforte o seu coração com o que deve ser. O amor exige tudo e com razão. Assim, eu estou em você e você em mim. Mas você se esquece facilmente que preciso viver para mim e para você. Se estivéssemos completamente unidos, você sentiria esta dor tão próxima quanto eu sinto.

A minha viagem foi terrível; só cheguei ontem às 4 horas da manhã, uma vez que na falta de cavalos, o cocheiro escolheu um outro caminho, mas que caminho terrível. Na penúltima parada fui avisado para não viajar à noite, fiquei com medo da floresta, e isso só me deixou mais ansioso – e eu estava errado. O cocheiro precisou parar na estrada infeliz, uma estrada imprestável e barrenta. Se estivesse sem os apetrechos que levo comigo teria ficado preso na estrada. Esterhazy, percorrendo este caminho habitual, teve o mesmo destino com oito cavalos que eu tive com quatro.

Senti algum prazer nisso, como sempre sinto quando supero com sucesso as dificuldades. Agora uma rápida mudança das coisas externas para as internas. Provavelmente nos veremos em breve, mas hoje não posso compartilhar contigo os pensamentos que tive durante estes poucos dias dias sobre a minha vida. Se os nossos corações estivessem sempre juntos, eu não teria nenhum deles. O meu coração está repleto de coisas que gostaria de dizer-te. Ah. Há momentos que sinto esse discurso não ser nada. Alegre-se. Você permanece [sendo] a minha verdade, o meu tesouro, o meu tudo como eu sou o teu. Os deuses devem nos mandar o restante, aquilo que deve ser para nós e será.

Seu fiel Ludwig.

***

Segunda, noite de 6 de julho [de 1812]

Você está sofrendo, minha querida criatura. Só agora percebi que as cartas precisam ser enviadas nas segundas ou quintas de manhã bem cedo. Os únicos dias em que o correio vai daqui para K [arlsbad ?]. Você está sofrendo. Ah, não importa onde eu estou, você está lá. Eu arrumarei isso entre eu e você para que possa viver contigo. Que vida!!! Assim!!! Sem você, perseguido pela bondade humana, o que pouco quero merecer é o que mereço. A humildade do homem diante do homem me machuca. E quando me considero em relação ao universo, o que eu sou e o que é Ele, a quem chamamos de maior, ainda assim, nisto reside a divindade do homem.

Choro ao pensar que provavelmente não receberá a minha primeira carta antes de sábado. Por mais que você me ame, eu te amo mais. Mas nunca se oculte de mim. Boa noite. Devo ir dormir. Oh, Deus! Tão perto! Tão longe! Não é o nosso verdadeiro amor uma construção celestial, mesmo assim é firme como as colunas do céu?

***

Bom dia, em 7 de julho [de 1812]

Embora ainda esteja na cama, os meus pensamentos vão até você, minha Amada Imortal, agora felizes, depois tristes, esperando para saber se o destino nos ouvirá ou não. Eu só posso viver completo contigo ou não viver. Sim, estou decidido a vaguear assim por muito tempo longe de você até que possa voar para os seus braços e dizer que estou em casa, e poder enviar a minha alma envolta em você ao reino dos espíritos. Sim, isto deve ser tão infeliz. Você será mais contida quando souber da minha fidelidade à você. Outra jamais poderá ter o meu coração, nunca, nunca, Oh, Deus! Por que um precisa estar separado do outro quando se ama. E, no entanto, a minha vida em V[iena] é agora uma vida miserável.

O teu amor me faz ao mesmo tempo o mais feliz e infeliz dos homens. Na minha idade eu preciso de estabilidade, de uma vida tranquila. Pode ser assim na nossa relação? Meu anjo, acabo de ser informado que o carteiro sai todos os dias. Por isso devo terminar logo para que você possa receber a carta logo. Fique tranquila, somente através da consideração tranquila de nossa existência podemos atingir o objetivo de vivermos juntos. Fique tranquila, me ame, hoje, ontem, desejos sofridos por você, você, você, minha vida, meu tudo, adeus. Oh, continue a me amar, jamais duvide do coração fiel de seu amado.

Sempre teu
Sempre minha
Sempre nosso.

***

Para maiores informações sobre Beethoven, vida e obra, acessar o site da Beethoven-Haus, em Bonn.

Curta e compartilhe com amigos e interessados. Obrigado!