São Leopoldo em 1825: colonos alemães eram ativos em reivindicações

Além das dificuldades na habitação, vestuário e alimentação, necessidades básicas de qualquer ser humano, os primeiros colonos alemães chegados ao Rio Grande do Sul 190 anos atrás enfrentaram um complexo problema de aculturação social que passava pela instituição familiar e todas as suas vertentes, como formas de casamento, relação pais e filhos, responsabilidades legais dos cônjuges, divórcio, sucessão e etc., língua, religião, atividades culturais e mentalidade política. Esta última se mostrou especialmente ativa. Visto que os colonos vinham de um país só a pouco com maiores liberdades políticas, as reivindicações na colônia foram intensas.

Como amostragem, analisaremos aqui uma sequência de duas cartas abaixo-assinadas produzidas em 17 de abril e 9 de maio de 1825 pelos colonos alemães de São Leopoldo. São Leopoldo que até essa data contava com cerca de 416 pessoas – entre eles 219 chefes de família, sendo o restante solteiros, mulheres e crianças.

Em uma analise da organização social dos primeiros imigrantes alemães, o Dr. Marcos Justo Tramontini apontou o Pastor Johann Georg Ehlers como uma das principais figuras contraditórias da nova colônia. Em ofício do presidente da Província para o Monsenhor Miranda, no Rio de Janeiro, datado de junho de 1825, José F. Pinheiro relata as relações conflituosas entre os colonos e o pastor. Diz o presidente que “sobre sua conduta, tenho o desprazer de anunciar que toda a Colônia se tem conspirado e indisposto contra ele, não sei se com justiça”. Em outro ofício, em setembro de 1825, o presidente afirma que os colonos “formam queixas frequentes sobre os costumes dele [Ehlers]”. E essas frequentes queixas só aumentaram com a chegada do Pastor Karl L. Voges, que conseguiu a simpatia de parte da colônia. 

O primeiro abaixo-assinado é datado de 17 de abril de 1825; foi escrito em francês, e dirigido ao presidente da província do Rio Grande do Sul, José Feliciano Fernandes Pinheiro. Assinado por 34 colonos é uma queixa contra o comportamento do Pastor Ehlers e solicita sua imediata substituição pelo Pastor Voges.

Monsenhor!
Tomamos a liberdade e temos a honra de endereçarmos diretamente a Vossa Senhoria como o nosso chefe da Colônia.
A seu tempo, deixamos a nossa boa pátria, quando nos foi prometido e encontrar neste país tudo o que podíamos desejar. A nossa grande preocupação é, principalmente, a nossa religião. Mas diremos francamente, não estamos contentes com a conduta do Sr. Ehlers, nomeado a ser nosso pastor. Pois, o Sr. Ehlers faz coisas que já não podemos aceitar. É verdade, prega a moral, mas justamente é a moral que lhe falta. Por exemplo, ele fala mal das pessoas. Entre outras coisas diz que alguns de nós teriam a intenção de matar o nosso inspetor e ainda outra pessoa, ambas estimadas. Diz ainda outras coisas, tudo somente para esquentar a cabeça da gente.
Achamos que ele inveja um pouco o Sr. Voges, o outro pastor, o qual amamos e estimamos, porque atua com todo o zelo possível, enquanto que o Sr. Ehlers se mete em muitos outros assuntos, mesmo assuntos de família, atiçando um contra o outro, como esposa contra marido, faz sacanagens contra seu colega Voges, sem dúvida porque observou que prestigiamos mais este jovem do que a ele. Mas, também é verdade que este jovem naturalmente não faz intrigas contra o Sr. Ehlers. Enfim, ficaríamos bem contentes se V. S.ª tivesse a bondade de resolver este assunto no sentido  de que o Sr. Voges ficasse conosco e que o Sr. Ehlers nos deixasse, para receber talvez emprego em outra colônia, porque, na verdade, um pastor é suficiente para esta Colônia de São Leopoldo. E, então, voltariam a reinar entre nós a tranquilidade, a paz e o bom senso, tudo como V.S.ª e nós desejamos.
Ainda outra coisa devemos dizer a V.S.ª, com que não concordamos e, como já foi dito, tomamos a liberdade de falar hoje com toda  franqueza porque estamos convencidos de que V.Sª nos há de perdoar: o Sr. Ehlers fez entrega a V.S.ª ou à Corte de Sua Majestade o Imperador petições nas quais escreveu os nossos nomes sem ter recebido ordens nossas.
Estamos persuadidos de que V.S.ª terá a bondade de fazer-nos justiça. Temos dito hoje e sempre, a verdade. Temos a honra de ser de V.S.ª mui humildes e mui obedientes servidores.
Colônia de São Leopoldo, 17 de abril de 1825.

1- J. W. Weinmann
2- Phlipp Feldmann
3- Frederico Borckenhagen
4- Zimmermann
5- Fredrich Jacobsen
6- J.F. Bunte
7- Johann Adolph Franke
8- Franz Elbers
9- H. Berghan
10- F. Berghan
11- F. Albrecht
12- H. Ahrens
13- G. Siegmundus
14- Heinmrich Ropers
15- H. Jenssen
16- v[an] d[en] Decken
17- Wilh.[elm] Petersen
18- Ch.[istian] Beck
19- Krüger

20- Jäger
21- +++ [J. Gutzeit]
22- Christian Frehse
23- H. Behrens
24- J.F. Haensel
25- M. Senger [Sänger]
26- August Tiem [Timm]
27- J. Jacks [Jaacks]
28- H.Bensen
29- Ludewig Kuss
30- J.M.Östreich
31- J. Mock [Moog]
32- Geo.[org] Jung
33- Fr.[iedrich] Dresbach
34- Uflacker

No entanto, em 9 de maio de 1825, 22 dias após o primeiro, uma nova carta, desta vez em favor do Pastor Ehlers, foi abaixo-assinada por 39 colonos, sendo que oito deles haviam assinado também o abaixo-assinado em protesto. Eram eles: Heinrich e Friedrich Berghan, August Timm, Johannes Moog, Johann Georg Östreich, Ludwig Kuss, Georg Jung, Friedrich Uflacker e Friedrich Dressbach.

Excelentíssimo Sr.,
Alguns membros da nossa colônia se atreveram a insultar publicamente o Sr. Pastor Ehlers, o qual por especial deferência do Imperador havia sido nomeado para aqui, e o trataram de modo desrespeitoso e revolucionário, tendo ainda induzido outros a assinar com eles uma declaração falsa e injuriosa.
Conhecemos este homem como pessoa que sabe cuidar com todo o desvelo da sua igreja e do seu colégio, ocupando com absoluta honradez e consciência o seu posto, de modo que é respeitado e estimado sinceramente pelos pais e crianças.
Elle também vive com inalterável zelo e ativamente para favorecer o nosso bem estar econômico, como atesta a prosperidade da colônia que nos dá a mais alegre esperança, e a sua conduta é exemplar, digna das suas funções.
Por isso, viemos cheios de confiança solicitar a V. Ex.ª se digne tornar sob sua poderosa proteção o Sr. Pastor Ehlers e garanti-lo contra semelhante ofensa e providenciar para que ele seja destinado como Pastor dos abaixo assinados na margem direita do rio.
Confiantes de que V. Ex.ª se dignará perdoa-los e a atender ao nosso ardente anhelo [sic], nos firmamos respeitosamente.

São Leopoldo, 9 de maio de 1825.

1-    Wilhelm Voltz
2-    Georg Bopp
3-    Friedrich Dreßbach
4-    Jacob Schilling
5-    Heinrich Schilling
6-    Joachim F. Schoenemann
7-    August Gudowsky
8-    Johann Georg Enstreich
9-    Georg Enstreich Jun [Jr.]
10-    Georg Jung
11-    Georg Jung Jun [Jr]
12-    August Homann
13-    Johannes Moog
14-    Maria [?]Lis [?]
15-    Hans Lanner
16-    Katarina Springer
17-    Daniel Kümel
18-    Mestern
19-    Carlos Niethamer Botecário [Boticário]
20-    Augusto Christoff Timm
21-    + + +  [Helfers]
22-    Hezzer

23-    E. Püring
24-    Johannes Bot
25-    Joachim Friedrich Lange
26-    Johahannes Brock
27-    Friedrich Uflacker
28-    Engelhardt Fornger
29-    Joh.[ann] Groth
30-    Henrich M. Mancke
31-    + + +
32-    Heinrich Berghan
33-    Friedrich Berghan
34-    Heinrich Kors [Kuss]
35-    Naltzcke
36-    Peter Vogel
37-    Heinrich Reese
38-    Wilhelm Ahlerss
39-    Ehrich

 [Para baixar as páginas originas, clique nas imagens abaixo. Elas fazem parte do acervo do AHRGS, em Porto Alegre e foram digitalizadas por Rodrigo Trespach, em 2007.]

Abaixo-assinado em favor do Pastor Ehlers 9.5.1825_1

Abaixo-assinado em favor do Pastor Ehlers 9.5.1825_2  Abaixo-assinado em favor do Pastor Ehlers 9.5.1825_3

Abaixo-assinado em favor do Pastor Ehlers 9.5.1825_4

Que motivo e interesses levaram oito colonos a assinar dois abaixo-assinados completamente antagônicos em um período tão curto de tempo?

Apesar das “queixas frequentes” e de a colônia ter se “conspirado e indisposto contra ele [Ehlers]” e de o presidente da província José F. Fernandes Pinheiro, o futuro Visconde de São Leopoldo, ter levado esses fatos ao conhecimento do Monsenhor Pedro M. Miranda Malheiro, na carta resposta do inspetor da colonização estrangeira, o responsável pela imigração, no Rio de Janeiro, de 24 de outubro de 1825, apenas lamenta a “indisposição da colônia” em relação ao Pastor Ehlers. Nenhuma outra medida é tomada. Para a administração da Província, e do Império, o “cura de almas” de São Leopoldo era Johann Georg Ehlers.

Tramontini analisou corretamente que havia no mínimo uma divisão e uma posição de caráter reivindicatório por parte dos colonos, mas nesse caso não levou em conta o porquê do motivo de que oito deles assinaram os dois abaixo-assinados.

Segundo Carlos H. Hunsche, das 34 assinaturas da queixa contra Ehlers 13 eram de integrantes da leva IV do biênio 1824/25, 11 da leva III, três da leva I, 1 da leva II e 6 da leva V. Isso quer dizer que a maioria deles, 28 ao todo somando as quatro primeiras levas (34 – 6 = 28), já conheciam Ehlers, Voges e o ambiente da colônia desde três meses antes, enquanto que o grupo menor, os da última leva, haviam acabado de chegar. Isso quer dizer que devem ter sido influenciados por alguém e, é só por isso, que podemos explicar porquê eles assinaram em um período tão curto dois documentos tão distantes de si.

O Pastor Voges, que se beneficiaria com o afastamento de Ehlers, havia perdido toda a sua documentação no naufrágio do bargantim Flor de Porto Alegre quando da sua vinda ao estado, em dezembro de 1824, na IV leva, justamente a com maior numero de representantes na queixa. Segundo Voges, entre essa documentação encontrava-se as ordens recebidas no Rio de Janeiro de que ele viria a São Leopoldo para ser efetuado como pastor que era. Sem essa documentação, Voges nunca conseguiu ser efetivado no cargo e só após muito insistência o máximo que conseguiu foi ser denominado “coadjunto” de Ehlers, recebendo um salário três vezes menor.

Pouco mais de um mês antes de a queixa ser realizada, Voges havia, em 1.º de março de 1825, enviado ao presidente da província em Porto Alegre a solicitação de que fosse efetivado como pastor titular explicando que a sua documentação havia se perdido em Mostardas no naufrágio, no que não foi aceito. Ora, como a carta de primeiro de março fora escrita em francês, e em muitas outras ele escreveu nessa língua, e a queixa também foi escrita em francês parece-nos possível que o mentor da queixa contra Ehlers seja o beneficiário dela, o Pastor Karl Leopold Voges.

Voges angariou e conseguiu da leva recém chegada, composta apenas por pais de famílias, o apoio que precisava, tendo ele mesmo deixado habilmente de assinar a carta quando na maioria dos abaixo-assinados realizados em São Leopoldo nessa época seu nome invariavelmente encabeçava as assinaturas dos demais colonos. No entanto, na queixa, assim como também em muitas outras solicitações Voges, ao contrário de Ehlers, viu frustrada suas intenções.

Bom, como Voges não foi atendido e tendo visto que a administração colonial dava preferência a Ehlers, restou às famílias Bopp, Dressbach, Schilling e Volz assinar o abaixo-assinado solicitando a permanência do pastor titular da colônia.

Depois do pedido de março, do abaixo assinado em abril, de uma nova solicitação feita em julho de 1825, Voges fez a última tentativa ao novo presidente da província Gordilho de Barbuda em setembro de 1826, no que foi dessa vez atendido em parte. Barbuda cedeu as suas solicitações desde que ele seguisse com os 422 colonos para a nova colônia a ser fundada em Torres em novembro daquele ano.

É óbvio que muitas outras considerações poderiam ser feitas. Uma delas é sobre a informação que nos trás Tramontini de que um outro abaixo-assinado realizado por colonos informa que os colonos que assinaram em favor de Ehlers foram por ele comprados com “uma garrafa de aguardente” (!). Isso torna a questão ainda mais delicada e é difícil hoje afirmar qual grupo, opositor ou favorável à Ehlers, que evidentemente era o foco das muitas intrigas, estava com a razão. Assim como também é provável que Voges apenas quisesse ter reconhecido seus direitos que jaziam no fundo da Lagoa dos Patos e que para isso usou de todos os meios possíveis.

Outra questão delicada é quanto a originalidade das assinaturas. Tanto a de F. Dressbach como a de J. Moog e G. Jung não coincidem com as assinaturas do abaixo-assinado a favor de Ehlers e a carta petição em favor de J. Tomás de Lima (de setembro de 1825). Teria o autor da queixa falsificado algumas assinaturas, principalmente daqueles que se chamou “os melhores que tem vindo” (os colonos da leva V)?

Por Rodrigo Trespach

© Informações extraídas de forma reduzida do livro Passageiros no Kranich (Alcance, 2007, páginas 112 a 120), de Rodrigo Trespach

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Referências

Bibliográficas:
HUNSCHE, Carlos H. O biênio 1824/1825 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975.
TRAMONTINI, Marcos Justo. A Organização social dos imigrantes – A colônia de São Leopoldo na fase pioneira 1824-1850. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000.
TRESPACH, Rodrigo. Passageiros no Kranich. Porto Alegre: Alcance, 2007.

Arquivo:
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

 

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