Presença desconhecida: calvinistas no Litoral Norte Gaúcho

Chegada dos imigrantes em SL em quadro de Ernst Zeuner

A presença de evangélicos reformados no Brasil remonta à época das invasões e o estabelecimento de colônias francesas e holandesas durante o período colonial: a França Antártica, no Rio de Janeiro, e Equinocial, no Maranhão, e a ocupação do nordeste brasileiro pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, todas entre séculos XVI e XVII. No entanto, tais empreendimentos foram efêmeros e, muito embora tenham deixado marcas, algumas de significativa importância religiosa, como a Confissão de fé da Guanabara (1558), uma das mais antigas declarações da fé reformada, a presença desse credo evangélico no Brasil consolidou-se somente com a imigração europeia no século XIX onde foram estabelecidas colônias no centro-sul do país.

Por Rodrigo Trespach

A Igreja Reformada

Surgida dos desdobramentos da Reforma Protestante desencadeada em 1517 na Alemanha por Martin Luther (1483-1546), comumente chamado de Martinho Lutero, a Igreja Reformada teve como seu líder inicial Urlich Zwingli (1484-1531), ou Urlico Zuínglio, padre em Zurique, na Suíça, onde iniciou pregações e debates em 1519, tendo em 1522, como Lutero, casado e renunciado ao sacerdócio iniciando a implementação da reforma da igreja nos cantões suíços. Viveu seus últimos dez anos em intensa atividade político-religiosa tendo entrado em guerra contra os católicos suíços e em debates acerca da Santa Ceia, um dos poucos pontos de divergência com Lutero, que resultaram no Colóquio de Marburg, em 1529. Suas ideias serviram de base para outros reformadores, entre eles o alemão Martin Butzer (1491-1551), o suíço Heinrich Bellinger (1504-1575) e o francês Jean Calvin (1509-1564), ou João Calvino em sua forma aportuguesada. Calvino é o mais destacado teólogo e o principal organizador do movimento reformado, motivo pelo qual no Brasil os evangélicos reformados são também chamados de calvinistas.

Calvino proibiu jogos e danças, pregou a predestinação, doutrina na qual o homem já nascia escolhido por Deus para a vida eterna ou a condenação. A riqueza material era a prova da graça divina, a nova religião foi, por isso, bem aceita dentro da burguesia emergente na Europa renascentista. Outro posicionamento calvinista era de que a igreja deve ser independente de qualquer Estado político. A base da doutrina está expressa em inúmeros escritos de confessionalidade e catecismos, tais como a Confissão de Heidelberg (de 1563), a Confissão Belga (1566) e nos Cânones de Dort (1619), além de trabalhos como A Instituição da Religião Cristã (de 1536) e o Catecismo da Igreja de Genebra (de 1542) de Calvino. A partir da Suíça as ideias de Zuínglio e Calvino propagaram-se atingindo a França, onde os seus seguidores ficaram conhecidos como huguenotes, a Holanda, a Inglaterra (os puritanos) e a Escócia (os presbiterianos).

Calvino foi responsável direto pela missão dos pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier, enviados para a França Antártica, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, a pedido do comandante Nicolau Durand de Villegaignon, responsável pela colônia. Em 10 de março 1557 os huguenotes franceses realizaram o primeiro culto protestante na América. A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de março.

Protestantes no Rio Grande do Sul

Entre os anos de 1824 e 1830, o Rio Grande do Sul recebeu os primeiros imigrantes alemães, que foram assentados nas duas colônias da província organizadas pelo governo imperial brasileiro. Para o sul do Brasil vieram então cerca de cinco mil imigrantes alemães católicos e protestantes. A denominação “protestante”, ou “evangélico”, é, no entanto, muito abrangente e pouco verdadeira. E isso muito se deveu ao fato de que o Brasil contava com trezentos anos de tradição católica. Não houve por parte da administração imperial brasileira nenhuma tentativa de preservar a particularidade desses imigrantes evangélicos, salvaguardando apenas sua diferença em relação à Igreja Católica, a igreja oficial do Império. Assim, as famílias imigrantes e as diversas correntes protestantes que trouxeram foram todas agrupadas sob essa distinção geral e que não condiz com seu passado religioso na Alemanha. Sob a distinção de protestante ou evangélico vieram para o Rio Grande do Sul luteranos, reformados (calvinistas), unidos, anabatistas entre outros com menor representatividade. Confessionalidades evangélicas com particularidades muito próprias na Alemanha e que aqui foram completamente esquecidas e inseridas num contexto político-religioso adverso.

Karl Leopold Voges

As comunidades onde os protestantes foram agrupados, inicialmente São Leopoldo (1824) e Três Forquilhas (1826), eram então comunidades independentes, com seus próprios pastores e escolas, desligadas do estado e sem nenhuma ligação com os núcleos formadores na Alemanha ou na Europa. Os dois primeiros pastores no Rio Grande do Sul são um exemplo dessa independência. Tanto Johann G. Ehlers, que atendeu São Leopoldo, como Karl. L. Voges, que teve um pastorado de quase 70 anos em Três Forquilhas, eram formados na Alemanha, mas independentes de qualquer instância superior. Todos os imigrantes foram atendidos por Ehlers e Voges sem distinção de confessionalidade evangélica.

O número expressivo de luteranos que compunham as famílias evangélicas, e principalmente a formação dos pastores vindos com as primeiras levas de imigrantes, favoreceu o direcionamento das atividades comunitárias e organizacionais para essa confessionalidade. Mesmo assim, uma organização que reunisse e atendesse os evangélicos só foi possível em meados da década de 1880. E essa institucionalização, naturalmente, seguiu uma orientação luterana. Criado em 1886 pelo pastor de São Leopoldo Wilhelm Rotermund (1843-1925), o Sínodo Rio-Grandense, reuniu várias comunidades dispersas. Pela primeira vez, em mais de 60 anos, os evangélicos tinham uma organização uniforme capaz de promover a criação de institutos de formação com mais qualificação que as escolas comunitárias, muito diferente da realidade das primeiras décadas onde a falta de pastores proporcionou o aparecimento dos pastores-leigos, assim denominados os colonos que realizavam os serviços pastorais sem uma formação superior na Alemanha e que segundo alguns deterioraram o protestantismo no Brasil.

Calvinistas no Litoral Norte do Rio Grande do Sul

A comunidade evangélica do vale do Três Forquilhas, no Litoral Norte, associou-se ao Sínodo Rio-Grandense, e seguiu como vinha fazendo desde 1826 a confessionalidade luterana, de acordo com os trabalhos do pastor Karl Leopold Voges. Nossas recentes pesquisas na Alemanha têm demonstrado, no entanto, que algumas das famílias que compunham essa colônia, assim como a de São Leopoldo, eram calvinistas. Como ocorreu em muitas outras colônias, os imigrantes de Três Forquilhas agruparam-se em torno de um pastor com a confessionalidade luterana porque este estava mais próximo da realidade em que viviam na Alemanha. Não há fonte documental específica a esse respeito, muito porque os calvinistas foram integrados às comunidades luteranas e com o passar das gerações essas famílias perderam completamente o vínculo com a confessionalidade reformada não deixando nenhum documento ou  relato.

Hoje podemos facilmente descobrir informações sobre o nascimento, o casamento e o falecimento de qualquer pessoa verificando os registros contidos nos cartórios de registros civis de qualquer cidade. Mas até o final do século XIX os únicos registros que diziam respeito a nascimentos, casamentos ou falecimentos eram os mantidos pela igreja, seja ela católica ou protestante. Aos padres e pastores cabia registrar e guardar esses documentos para que servissem aos interesses comunitários. No Brasil, somente a partir da década de 1870, os maiores centros urbanos começaram organizar cartórios de registros civis, mas apenas depois da proclamação da república, em 1889, é que esses cartórios passaram a ser obrigatórios em todo o país. Por isso, os registros religiosos, de nosso interesse particular aqui os evangélicos da comunidade de Três Forquilhas anteriores a essa época são de suma importância para a pesquisa. Infelizmente a conservação e manutenção desses registros foram prejudicadas por muitos fatores. Uma parcela dos registros foi destruída durante a perseguição aos descendentes de alemães em 1942, ano em que o Brasil declarou guerra à Alemanha e entrou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nesse ano Tácito Fernandes, o subdelegado responsável pela região, destruiu lápides com inscrições em alemão no cemitério e queimou muitos livros que estavam guardados na Casa Paroquial.

Salvaram-se no episódio os registros de batismo (de 1826 até a data) e parte dos registros de casamentos (de 1850 até a data). Esses compõem a maioria dos registros no qual se baseia toda a nossa pesquisa sobre as relações familiares na colônia. Infelizmente foram destruídos pelo fogo, o livro de registros de óbitos (de 1826 até 1893), parte do registro de casamentos (de 1826 até 1850) e inúmeros outros documentos e relatórios desde 1826. Para que se tenha uma ideia do estrago causado à história da colônia outra fonte, um mapa estatístico de 1858 guardado no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, afirma que entre 1826 e 1858 houve na colônia 160 casamentos. Os livros restantes, em especial os de batismo, contêm informações vagas e, não raro, contraditórias. O pastor Voges, responsável pela paróquia entre 1826 e 1893, ano de sua morte, em raros casos citou a origem do imigrante na Alemanha – omitiu também o nome dos avós e em muitos casos a profissão do colono – e como era natural não realizou nenhum apontamento quanto à que grupo evangélico pertencia a família imigrante.

A família de Alfredo Trespach (1901-1945). Os Dressbach (Trespach) eram calvinistas quando chegaram ao Brasil.

Com parte dos registros destruídos e a outra parte com informações precárias o trabalho de identificação e pesquisa dessas famílias na Alemanha torna-se muito difícil. Nosso trabalho de pesquisa, desenvolvido desde 2007, visa encontrar a origem das famílias de Três Forquilhas na Alemanha numa tentativa de compreender melhor os imigrantes que aqui chegaram, que cultura, organização social e religiosa trouxeram. Como amostragem desse trabalho, enumeramos algumas famílias das quais temos dados precisos e que estavam desde os tempos da Reforma Protestante, no século XVII ligadas à Igreja Reformada, trabalho este realizado após minuciosa pesquisa em vários arquivos no Brasil e na Alemanha.

  • Dressbach (Dresbach, Tresbach e Trespach), Friedrich, nascido em Calbach, Hessen, Alemanha, casado em segundas núpcias com Anna Marie Christine Kämpf, nascida em Lindheim, Hessen. Chegaram ao Brasil com cinco filhos menores e dois outros já casados. Estabelecidos inicialmente em São Leopoldo, só após 1836 chegaram ao Litoral Norte/RS;
  • Helbig, Johann Nikolaus, nascido em Bermersheim vor der Höhe, Rheinland-Pfalz, casado com Anna Margaretha Stauf, nascida em Dolgesheim, Rheinland-Pfalz. Chegaram ao Litoral Norte/RS com sete filhos;
  • Justin, Valentin, nascido em Heimersheim, Rheinland-Pfalz, casado em São Leopoldo com Barbara Knewitz, nascida em Stein-Brokenheim, Rheinland-Pfalz. Emigrou solteiro e na companhia de duas irmãs, uma delas, Elisabeth Gertraudt, casada com Philipp Peter Schmitt sobre o qual publicamos dados em nosso último livro (2010) e desenvolvemos um trabalho recentemente publicado pela PUC/RS e pela Johannes Gutenberg-Universtität Mainz, na Alemanha, mas que não conseguimos identificar o credo, possivelmente também reformado. Os Justin chegaram ao Litoral Norte/RS em 1826 e trouxeram uma tradição de ativos membros na Igreja Reformada da Alemanha, o avô do imigrante era Kirchenältester, um decano da cidade no conselho paroquial;
  • Klippel (Knippel, Klipel), Jacob, nascido em Erbes-Büdesheim, Rheinland-Pfalz, casado com Margaretha Horn, nascida em Heimersheim. Chegaram ao Brasil com três filhos pequenos;
  • Knopf, Valentin, nascido em Wahlheim, Rheinland-Pfalz, casado com Eva Claus, nascida também em Wahlheim, e vindo para o sul do Brasil em 1826, sendo integrante da primeira leva de colonos chegados em Três Forquilhas; deixou a colônia por volta de 1829, antes disso escreveu uma carta aos parentes na Alemanha em 1827.

Sabendo que na leva pioneira, chegada a Torres em dezembro de 1826 e estabelecida no Vale do Três Forquilhas em 1827, havia quase 240 pessoas, cerca de 45 famílias, que professavam a fé evangélica o número identificado como sendo de reformados – pelo menos cinco com certeza – é muito pequeno, seriam cerca de 11% do total. Mas há de se ressaltar, no entanto, que ainda há muitas famílias das quais nada ou pouco se sabe na Alemanha e que podem muito bem serem calvinistas, devido às relações de parentesco (casamento e compadrio) que mantiveram no Brasil com as famílias já identificadas e melhor documentadas. São exemplos, nesse caso, os Becker, Geeb, Knewitz, Maschmann, Menger, Mittmann e Schmitt entre outras. Esse número pode ser ainda maior, se considerarmos que as levas de imigrantes que integraram o grupo formador da colônia no ano de 1826 eram quase todas oriundas do Pfalz (Palatinado), região onde o calvinismo mais prosperou na Alemanha. Não seria exagero estimar que cerca de 30% das famílias estabelecidas no Vale do Três Forquilhas fossem calvinistas na Europa e que só aqui se permitiram, devido às circunstâncias, integrar-se a uma comunidade de maioria luterana.

Registro de nascimento de Valentin Justin

É importante ressaltar, no entanto, que mesmo na Alemanha a diferença entre reformados/calvinistas e luteranos não era muito aparente. E a integração entre esses credos estava longe de ser proibido. A família Justin, por exemplo, era tradicionalmente calvinista o que não impediu que alguns membros da família fossem batizados e casassem na igreja luterana, caso dos pais dos imigrantes estabelecidos em Três Forquilhas.

Com os dados que dispomos atualmente, e devido a destruição de muitos documentos, é difícil saber se houve algum tipo de manifestação contrária a aceitação dessa integração entre os credos em Três Forquilhas. O que é certo é que pouco, ou nada, sobrou da presença calvinista no Litoral Norte do RS.

© Rodrigo Trespach – www.rodrigotrespach.com

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Referências bibliográficas:

HUNSCHE, Carlos Henrique. O ano de 1826 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Metrópole, 1977.

MÜLLER, Elio E. Três Forquilhas (1826-1899). 1.ª fase, a formação da Colônia. Curitiba: Editora Fonte, 1992.

____. Três Forquilhas (1900-1949). 2.ª fase, do Império à República. Curitiba: Italprint Gráfica Editora Ltda, 1993.

ROSA, Gilson Justino. Imigrantes alemães 1824-1853 (Códice C-333). Porto Alegre: EST, 2005.

TRESPACH, Rodrigo. Passageiros no Kranich. Porto Alegre: Alcance, 2007.

____. Borger, Justin, Schmitt e outras famílias de origem germânica. Florianópolis: Secco, 2010.

____. De Heimersheim/ Alzey para o litoral norte gaúcho – famílias Borger e Justin e seus ancestrais na Alemanha. In: ELY, Nilza Huyer (Org.). D. Pedro de Alcântara – Marcas do Tempo. Porto Alegre: EST, 2010, p.152-160.

Internet:

Instituto Presbiteriano Mackenzie, SP.

EKD – Evangelische Kirche in Deutschland.

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