Um passeio pelas lagoas do litoral gaúcho, em 1891

Desde que o sistema de navegação lacustre foi desativado, o Litoral Norte gaúcho perdeu o seu maior investimento desde a “Estrada da Laguna” no século 17 – seja no âmbito comercial, cultural ou turístico. Nenhuma atividade posterior trouxe maior benefício do que aquele que foi desmantelado no início da década de 1960.

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Depois de meio século, o Litoral Norte esqueceu o quanto a navegação lacustre (e a via férrea) tinha (e tem) a nos oferecer. Por isso, hoje vamos retornar 125 anos no tempo e recordar (ou conhecer), através da pena do primeiro escritor osoriense, como era realizada uma viagem entre a então Conceição do Arroio (hoje Osório) e Três Forquilhas (uma colônia alemã).

O texto a seguir é parte do manuscrito desaparecido de Antônio Stenzel Filho (1862-1933), transcrito pelo historiador Guido Muri (1916-2010) e publicado em nosso livro Amor à Arte (Pragmatha, 2015).

Stenzel Filho chamou esse pequeno trecho de suas memórias de “Passeio político a Três Forquilhas”. Segundo ele mesmo informou, depois de promulgada e decretada a Constituição do Rio Grande do Sul – em 14 de julho de 1891 – e eleito o doutor Júlio de Castilhos para presidente do Estado, o coronel Antônio Marques da Rosa (1834-1913), chefe do Partido Republicano Riograndense local, resolveu festejar esse acontecimento fazendo com seus correligionários um passeio ao distrito de Três Forquilhas.

A convite do “chefe”, os principais correligionários da vila resolveram atendê-lo, acompanhando-o na excursão até o Vale do Três Forquilhas. Antônio Stenzel Filho era do PRR e foi, portanto, o cronista da viagem. Vamos ao texto, sem indicação de data, mas que se reporta ao ano de 1891:

“Não me lembro de todos os que foram, mas só de alguns: Pedro Mendonça Rodrigues, Manoel José de Freitas, Inácio B. da S. Netto, Jose Corrêa de Andrade, Júlio Pinto Guimarães, Manoel Lopes de Sousa, Luis Moura, Júlio Antônio Vasquez e senhora, Patrício Cidade e família e etc. A comitiva era composta talvez dumas 30 pessoas. Também foi a banda de música.

Saímos daqui, no dia 9 ou 10 de agosto do referido ano de 1891. Conduzia-nos o vaporzinho mais tarde chamado de “Gustavo”. A viagem foi esplendida. Durante a travessia da Lagoa da Pinguela, a banda de música executou lindas peças e dançamos a bordo. Ao entrarmos na Lagoa dos Quadros, dançou-se, e o coronel com alguns correligionários, no alto, apreciava o esplendido panorama da Costa da Serra. O dia estava radioso.

Às 4 horas da tarde, mais ou menos, entramos no porto dos Cornélios. Aí desembarcamos, encontrando já, às nossa espera, alguns cavalos encilhados e uns 5 ou 6 carros, puxados a bois. O vapor ficou à nossa espera para a volta. Desse porto em diante, alguns a cavalo e o resto embarcado nos tais carros, prosseguimos a viagem, demandando as Três Forquilhas. Umas boas 3 léguas daí à sede do distrito, para onde nos dirigíamos. A viagem então, se tornou engraçadíssima, pois a cada solavanco dos carros, as moças soltavam gritos e os homens davam gargalhadas. Depois, vem a noite e então se torna triste a travessia. Quase nada se pode gozar do esplendor que oferece o extenso vale do rio Três Forquilhas; mas o espetáculo fica para o nosso regresso.

Afinal, era já um pedaço da noite, quando chegamos à casa da dona Luisinha Voges. Um belo edifício nos espera então. Nele residia a referida senhora, da família de Pedro Henning [König], daquele distrito e viúva do finado Jacob Voges, irmão de Adolfo Voges e, portanto, filho também do finado pastor. Em meu compartimento à direita do edifício, funcionava um bem montado armazém comercial, pertencente à mesma senhora, e dirigida pelo senhor Adolfo Diehl, que naquele tempo ainda era moço solteiro.

Fomos recebidos com carinho, por aquela distinta senhora, que nos proporcionou todo o conforto possível. No dia seguinte, cedo, recebeu o coronel Marques a visita do homenageado, o senhor Adolfo Felipe Voges, que morava um quilometro além da casa em que estávamos. Não chegamos até lá, porque previamente havia sido combinado que seria a casa de dona Luisinha Voges a escolhida para o nosso recebimento”.

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De onde o grupo partiu e qual o barco que os transportava?

Nessa época, o Porto Lacustre, o porto de Osório, na Lagoa do Marcelino, ainda não existia. Assim como não existia o canal entre a Lagoa do Marcelino e a da Peixoto. O próprio Pontal dos Diehl só ganharia importância depois da virada do século; era, ainda por volta de 1890, não mais do que um pequeno ancoradouro. Por isso, o coronel Antônio Marques e seus correligionários provavelmente devem ter partido do porto da Lagoa da Pinguela, tendo chegado até ele costeando a lagoa do Peixoto pela estrada do Palmital. Tal porto estava localizado a cerca de 9 km da cidade.

Quanto ao nome do barco, no relato de 1891 Stenzel Filho informa apenas que o barco era “o vaporzinho mais tarde chamado de ‘Gustavo’”. Somente em relato posterior, nos “Apontamentos Históricos e Geográficos sobre Conceição do Arroio” – que supomos sejam os mesmos manuscritos transcritos por Muri, cujos originais desapareceram – é que ele informou ser o “Itapeva” o barco que depois de um naufrágio recebeu o nome de “Gustavo”. Stenzel Filho acrescentou ainda que, ao todo, nove pessoas teriam morrido no naufrágio e que, depois de recuperado, o Itapeva foi vendido a Albino Berglund, que o levou até Laguna (SC), onde lhe deu o nome de “Gustavo”, em homenagem ao jovem barqueiro. Algumas fontes acreditam que a própria mãe de Gustavo dera o nome ao barco – o que, sinceramente, nos parece inadequado.

O naufrágio do Itapeva matou Gustavo Voges (1872-1894), filho de Luisa Voges, o professor Christian Tietböhl (1828-1894) e a esposa Catarina Eigenbrodt (1837-1894). Christian Tietböhl era pai de Leopoldo Tietböhl (1874-1947), um dos primeiros escritores do Litoral Norte, autor de Aventuras de um Tropeiro, uma narrativa regional muito popular na época. Os registros da comunidade luterana de Três Forquilhas registram os óbitos dos naufragados em 1º de junho de 1894.

A historiadora Marina Raimundo, autora de Navegação Lacustre Osório-Torres (1985), escreveu, en passant, que o naufrágio na Lagoa da Pinguela ocorreu “por vota de 1890”. O historiador Guido Muri chegou a informar em 1989, que o barco seria o “Debize”, que estaria servindo de rebocador da chata “Santa Maria” quando naufragou “em 2 de novembro de 1895”. Tanto a data quanto o nome foram corrigidos por Muri em 1992, após a publicação do livro de Elio Müller sobre Três Forquilhas, em 1991. Müller colheu as informações em fonte mais segura, na própria comunidade dos náufragos e proprietários da empresa de navegação. Mesmo com as publicações que esclareciam datas e nomes, Raimundo manteve a desinformação na 3ª edição do seu livro, em 2014.

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Mas antes do naufrágio, no “passeio político” de 1891, o Itapeva partiu do porto da Pinguela rumo a Três Forquilhas, atravessando as lagoas da Pinguela, do Palmital, das Malvas, o sinuoso canal do João Pedro (Rio Tramandaí) e ai à Lagoa dos Quadros, para finalmente chegar ao Porto dos Cornélios. Deste porto até o destino final, o trajeto foi realizado a cavalo.

A crônica “Passeio político a Três Forquilhas” nos remete a um tempo em que o progresso era medido pela velocidade do vapor, do potencial lacustre do Litoral Norte, que infelizmente hoje é totalmente desprezado – seja em que forma for. Eu continuo a pensar que no futuro, talvez não muito distante, possamos novamente refazer o trajeto que Stenzel Filho, o coronel Antônio Marques e tantos outros fizeram: percorrer o litoral de barco e “gozar do esplendor” natural que a região nos oferece.

Por Rodrigo Trespach

As informações podem ser reproduzidas, desde que os créditos sejam dados ao autor. © Rodrigo Trespach, direitos reservados, conforme Lei nº 9.610, de 19.02.1998.

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