A beleza e a dor: uma história íntima da Primeira Guerra Mundial

A beleza e a dor

“Esta será nossa má ou boa herança. Será, de qualquer forma, nossa herança irreversível, que estará acorrentada à nossa memória para sempre”.

Durante muito tempo, a História das grandes guerras foi construída através da visão de líderes políticos, de marechais ou generais, tratados, mapas ou documentos diversos, guardados em arquivos militares ou de Estados e governos. Em que pese sua importância, essa visão só revelou apenas uma parte da história. O lado verdadeiramente humano dos conflitos – a vida nas trincheiras, nas cidades ocupadas, o racionamento e falta de alimentos, a vida durante os bombardeios, o dia a dia das enfermarias de campanha ou as privações do soldado raso na linha de frente – foi pouco explorado.

E é sob essa nova visão de História, da história do cotidiano durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que o historiador sueco Peter Englund revela em A beleza e a dor , mais um lançamento da Companhia das Letras, por ocasião aos 100 anos da Grande Guerra.

Para narrar o desenrolar do conflito, Englund, professor de história na Universidade de Uppsala e secretário da Academia Sueca, passa ao longe por nomes consagrados como Paul von Hindenburg, Erich Ludendorff, Woodrow Wilson, Lloyd George ou mesmo Francisco Ferdinando, o herdeiro do trono austro-húngaro, cujo assassinato em Sarajevo serviu de estopim para a deflagração do conflito.

Escrito em forma de diário e dividido em cinco partes – para cada um dos anos transcorridos durante a guerra -, A beleza e a dor narra a vida de cada uma das 19 pessoas comuns* que Englund usou para reconstruir a vida durante a Primeira Guerra, o primeiro grande conflito que envolveu os cinco continentes. Um quadro complexo do cotidiano vivenciado por pessoas tão diferentes como uma estudante alemã de doze anos, um cavaleiro otomano, um dinamarquês do Exército alemão, um piloto belga, uma enfermeira inglesa do Exército russo ou um funcionário público francês.

Baseado em um grande número de diários e cartas, o livro não é, como o próprio autor escreve, “um livro sobre o que foi a Primeira Guerra – ou seja, suas causas, seu desenrolar, seu final ou suas consequências -, e sim como foi esse conflito”. Assim, em A beleza e a dor  o leitor não encontrará eventos ou as manobras táticas dos exércitos envolvidos, mas pessoas, impressões, experiências e estados de ânimo, que vão da euforia pela entrada na guerra e expectativa de uma vitória rápida e fácil a preocupação com as famílias, a tristeza pela morte de amigos e o desespero e angústia para que o conflito, que parecia não ter mais fim, acabasse logo. Daqueles que esperavam mudar de vida com a guerra àqueles que perderam com vida com ela.

Os personagens reais que Englund retirou do anonimato viveram na Frente Oriental, nos Bálcãs, No Oriente Médio, na África Oriental e na Mesopotâmia. Eles servem na artilharia, na infantaria, na força aérea e na marinha. Dois deles morrerão, um jamais ouvirá o disparo de um único tiro, alguns se tornarão prisioneiros de guerra e outros serão condecorados como heróis, no SMS Helgoland ou no Palácio de Buckingham.

A cada dia, página de diário ou folha de carta, uma experiência única. A estudante alemã Elfriede Kuhr, de doze anos, por exemplo, vive com a avó em Schneidemühl e acha maravilhoso festejar cada vitória alemã. Até que a dureza da guerra chegasse a Alemanha: seu irmão foi convocado, há racionamentos de alimentos e fome; a fome que levará ao óbito um bebê de seis meses de quem ela cuida no hospital da cidade. O aventureiro venezuelano Rafael de Nogales tentou se alistar em vários exércitos Aliados sem sucesso. Conseguiu um lugar na cavalaria otomana, no lado oposto, o das Potências Centrais.

O engenheiro William Henry Dawkins, de apenas 21 anos, escrevia regularmente para casa e para irmãs pequenas; até ser morto por uma granada em Galípoli. O jovem norte-americano Vicenzo D’Aquila se alistou na infantaria da Itália de seus ancestrais; prometeu não matar ninguém, teve uma crise religiosa e, ajudado por seu superior, passou a trabalhar na retaguarda.

Pál Kelemen, da cavalaria austro-húngara, assiste ao enforcamento de um guerrilheiro sérvio e anota em seu diário a visita à um bordel para oficiais em Uzice. A australiana Olive King serve como motorista do Exército sérvio na esperança de que a guerra lhe traga alguma emoção. Richard Stumpf, o marinheiro alemão que achava a guerra monótona, presencia a revolta em Wilhemshaven, acontecimento que acabaria por forçar a renúncia do kaiser e pôr fim a guerra.

A beleza e a dor: uma história íntima da Primeira Guerra Mundial é, nas palavras do historiador militar inglês Antony Beevor, “um mosaico impressionante da experiência pessoal” durante um dos mais traumáticos conflitos do século XX.

Quando a guerra acabou, Paolo Monelli, soldado italiano prisioneiro na Áustria, escreveu amargurado: “Esta será nossa má ou boa herança. Será, de qualquer forma, nossa herança irreversível, que estará acorrentada à nossa memória para sempre”.

As dezenove histórias de Englund não contribuem com a historiografia simplesmente, mas, essencialmente, na compreensão do sofrimento humano, com o que há de belo e o que há de mais doloroso.

Por Rodrigo Trespach

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* Os 19 indivíduos que compõem a narrativa de Englund são:

Elfriede Kuhr, estudante alemã, 12 anos
Richard Stumpf, marinheiro alemão, 22 anos

Pál Kelemen, membro da cavalaria austro-húngara, 20 anos
Andrei Lobanov-Rostovski, engenheiro do Exército russo, 22 anos
Florence Farmborought, enfermeira inglesa do Exército russo, 27 anos
Kresten Andresen, soldado dinamarquês do Exército alemão, 23 anos
Michel Corday, funcionário público francês, 45 anos
Alfred Pollard, soldado da infantaria britânica, 21 anos
William Henry Dawkins, engenheiro do Exército australiano, 21 anos
Sophie Botcharski, enfermeira do Exército russo, 21 anos
René Arnaud, soldado da infantaria francesa, 21 anos
Rafael de Nogales, membro da cavalaria otomana, venezuelano, 35 anos
Harvey Cushing, cirurgião do Exército americano, 45 anos
Angus Buchanan, soldado da infantaria britânica, 27 anos
Willy Coppens, piloto da Força Aérea belga, 22 anos
Olive King, motorista do Exército sérvio, australiana, 28 anos
Vicenzo D’Aquila, membro da infantaria italiana, americano de origem italiana, 21 anos
Edward Mousley, membro da artilharia britânica, neozelandês, 28 anos
Paolo Monelli, caçador de montanha do Exército italiano, 23 anos

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