Entrevistamos Durval Pereira, autor de Operação Brasil

O historiador militar Durval Lourenço Pereira revela em Operação Brasil (Editora Contexto, 2014) os detalhes do plano de ataque nazista ao Brasil. De quebra, acaba com o mito de que norte-americanos teriam afundado navios brasileiros a fim de forçar a entrada do Brasil na Segunda Guerra e de que o país sofreria uma invasão alemã.

Nascido no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, casado e com uma filha, tenente-coronel R/1 do Exército Brasileiro, formado na Academia Militar das Agulhas Negras, e produtor do documentário Lapa Azul, sobre a participação do III Batalhão do 11º Regimento de Infantaria na Segunda Guerra, exibido pelo History Channel, Durval Lourenço Pereira nos concedeu essa semana uma entrevista, onde fala sobre o livro que acaba de lançar.

Entrevistamos Durval Pereira, autor de Operação Brasil

Rodrigo Trespach – Durval, o que levou um oficial do Exército a escrever sobre a campanha submarina na costa brasileira na Segunda Guerra?

Durval Pereira – Foi interessante o processo que deu origem à Operação Brasil. A ideia inicial era escrever um livro sobre os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), mas logo percebi que a avaliação da participação dos brasileiros na guerra estava vinculada à compreensão do processo de envolvimento do país no conflito. Foi quando dei início ao estudo sobre o tema, e percebi o quanto são desencontradas e imprecisas as descrições do episódio que motivou a entrada brasileira na guerra. Durante a pesquisa, afloraram novas conclusões à medida em que chegavam documentos de arquivos estrangeiros, fazendo crescer o espaço inicialmente dedicado ao tema no livro. O que estava restrito a um modesto parágrafo foi progressivamente tomando corpo, transformando-se num subtítulo, depois num capítulo, e, por fim, num livro. Operação Brasil é uma obra que ganhou vida própria.

Rodrigo Trespach – Historiadores militares sempre foram encarados por historiadores de outras escolas historiográficas com certo receio. Você ainda vê isso hoje ou isso é coisa do passado?

Durval Pereira – Esse receio existe naturalmente, em maior ou menor grau, entre historiadores de diferentes escolas — e não apenas entre civis e militares. Da minha parte, felizmente, tive uma impressão oposta. Desde que comecei estudar a participação brasileira na II Grande Mundial, tenho recebido o apoio valioso de historiadores civis adeptos de diferentes correntes historiográficas e expoentes na historiografia militar brasileira. Destaco as valiosas orientações de historiadores respeitados como César Campiani Maximiano, Frank D. McCann, Francisco César Alves Ferraz e Dennison de Oliveira — todos Ph.D. em História. Devo a eles parte substancial do conhecimento, métodos, e fontes de estudo adquiridos sobre o papel do Brasil no conflito.

Rodrigo Trespach – Nunca foram encontrados planos de invasão do Brasil pelos nazistas, mas na internet ainda circulam especulações a respeito. Isto estaria ligado à falta de informações e trabalhos sérios na área ou é puro sensacionalismo?

Durval Pereira  Após a rendição alemã, a devassa feita pelos Aliados nos arquivos do III Reich não encontrou qualquer plano nazista de invasão das Américas — mesmo porque o Eixo sequer tinha meios para isso — pois a estratégia elaborada pelo Partido Nazista para a dominação das Américas era outra. No Brasil, ela esteve baseada no fornecimento de apoio político, financeiro e organizacional, a determinados partidos políticos,visando a tomada do poder pelas urnas ou, caso necessário, pela força das armas. Esse modelo foi utilizado tanto pelos nazistas quanto pelos fascistas e comunistas nos anos 1930.

O surgimento de mitos a cerca deste tema não se deve à falta de informações ou a carência de pesquisas minuciosas. A formulação de teorias inovadoras sobre o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial é um fenômeno provocado pela cada vez mais influente cultura de massa, que direciona um sem-número de obras para o universo da fantasia. Essa tendência é potencializada pelo relativismo contemporâneo, hábil na negação de verdades, conceitos e valores, inspirando a elaboração de teorias conspiratórias sem qualquer base documental.

Rodrigo Trespach – Qual o motivo de a historiografia brasileira não procurar se aprofundar na área e esclarecer muitas das dúvidas que acabaram se tornando mito durante as últimas sete décadas?

Durval Pereira – Trata-se de uma questão mais ampla, que envolve a educação brasileira como um todo. No cerne desta questão, está o nosso modelo educacional baseado no sócio-construtivismo, na crença de que “a criança constrói seu conhecimento”. Esse modelo inspirou a formulação de políticas educacionais equivocadas, particularmente para o ensino da História, levando o padrão educacional do Brasil às últimas colocações do ranking de diversos programas internacionais de avaliação.

Os parâmetros curriculares nacionais, estabelecidos a partir dos anos 1980, decretaram a caducidade do ensino tradicional da História em prol das “capacidades intelectuais autônomas do estudante”, e da constituição da sua “identidade social”. De acordo com o modelo adotado pelo Ministério da Educação, até mesmo as crianças das quatro primeiras séries do Ensino Fundamental foram chamadas a interpretar a História segundo o seu ponto de vista — mesmo sem conhecerem a História no seu nível mais elementar. Este quadro vai se agravando conforme o jovem alcança o Ensino Médio e, depois, a Universidade.

Seguindo tal direcionamento, o ensino da História estabeleceu uma inversão de valores surreal: é o fato histórico que precisa moldar-se ao entendimento do aluno/historiador. Esse ambiente é, ao mesmo tempo, hostil à elucidação do nosso passado e altamente fértil para o surgimento de mitos, pois o pesquisador é estimulado a explicar o fenômeno histórico antes mesmo de conhecê-lo em detalhes. Ao final do processo, a elucidação do evento ou mito perde o sentido. Para que empreender pesquisas sobre algo que já foi devidamente “interpretado”?

Por tudo isso, o pouco aprofundamento da historiografia brasileira no estudo da II Grande Mundial — como em outros episódios da História do Brasil — origina-se, sobretudo, no contrassenso do modelo educacional em vigor.

Operação Brasil o ataque alemão que mudou o curso da Segunda Guerra Mundial

Rodrigo Trespach  – Na Europa, nos Estados Unidos e na própria Argentina, publicações sobre a Segunda Guerra Mundial enchem as livrarias. Por que isso não ocorre no Brasil? Por que sabemos tão pouco sobre nossa participação no maior conflito militar da história?

Durval Pereira – Não há uma resposta fácil para essa pergunta. Uma explicação simplista jogaria a culpa na complexidade do tema e na dificuldade de acesso aos arquivos nacionais e estrangeiros. Todavia, isoladamente, ela não explica satisfatoriamente a questão, pois outros episódios históricos ainda mais remotos — e de maior dificuldade de pesquisa — ocorridos durante o período colonial e o Império, são rotineiramente estudados e tornam-se obras de grande sucesso editorial.

Uma razão mais plausível diz respeito à hegemonia de uma linha de pensamento relativista, que nega a existência do fato histórico, descrevendo os eventos da História segundo esquemas pré-determinados — e não o contrário. Conforme reza essa tendência, a história da humanidade é costumeiramente explicada pelo conflito entre o capital e o trabalho. Como a Segunda Grande Guerra foge a esse reducionismo limitado, a participação brasileira no conflito é pouco abordada — e até mesmo deturpada —, despertando pouco interesse do público.

De uma forma geral, tal fenômeno incide no relato das nossas guerras contra inimigos externos. A origem da Guerra da Tríplice Aliança, por exemplo, costuma ser atribuída aos interesses do capital inglês. Já o envio dos nossos pracinhas à Itália costuma ser explicada como uma manobra política de Getúlio Vargas em troca da construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda. A formulação dessas teorias segue o receituário ideológico dominante na Escola brasileira, e em nada contribui para elucidar a nossa participação nos conflitos bélicos.

Para conhecermos melhor o papel do Brasil na II Grande Mundial, é preciso efetuar uma revisão curricular profunda na Educação brasileira. Além disso, cabe estimular o trabalho em conjunto de historiadores civis e militares — que existe hoje de forma incipiente.A quase total ausência de cursos de especialização ou pós-graduação em História Militar nas universidades é um reflexo desse quadro.

Via de regra, a complexidade da estratégia e da doutrina militar são do domínio do profissional das armas, enquanto as ferramentas metodológicas para o estudo da História dizem respeito aos historiadores civis qualificados. Virá da conjunção de esforços entre os dois universos o avanço eficaz do conhecimento aprofundado sobre o tema. A Marinha do Brasil já incentiva esta simbiose de forma admirável, editando a Revista Navigator, que congrega professores, pesquisadores e alunos de História com o propósito promover e incentivar o debate e a pesquisa sobre temas de História Marítima no meio acadêmico. A revista está inclusa no QUALIS da CAPES e é, oficialmente, uma revista científica.

Rodrigo Trespach – Popularmente se pensa que o Brasil estaria muito ligado à Alemanha de Hitler e de que foram os norte-americanos que forçaram a entrada brasileira na guerra…

Durval Pereira – Estas são duas teorias conspiratórias tão antigas quanto persistentes. Lembro do meu pai, que foi convocado para a FEB no início dos anos 40, contando essa versão quando eu era menino. Já a minha filha, que terminou o Ensino Médio há pouco, afirma que todos os seus professores de História, nos últimos anos,foram unânimes em descrever a motivação para a entrada do Brasil na II Grande Mundial: o afundamento dos nossos navios pelos norte-americanos.

Quanto ao jogo político durante o Estado Novo, tornou-se hegemônica a versão que separa os protagonistas brasileiros desse tempo numa espécie de Fla-Flu: americanófilos contra germanófilos. Ao que tudo indica, os relatos norte-americanos foram aceitos sem uma crítica mais aprofundada, escritos em tempos de guerra onde fala mais alto a máxima: “quem não é por nós é contra nós”. De acordo com alguns relatos da diplomacia dos EUA, a resistência dos militares brasileiros em ceder às exigências norte-americanas de colocar suas tropas no Nordeste foi avaliada como um sinal de simpatia ao nazifascismo — e não oriundo do desejo de resguardar a soberania nacional. É espantoso como essa visão vem se perpetuando ao longo dos anos, em parte devido a uma visão ideologicamente enviesada, com o intuito de atribuir ao segmento militar uma tendência política depreciativa.

Contudo, a maior parte dos pesquisadores deixou de lado um item fundamental: os arquivos diplomáticos da Alemanha nazista. Se houve, de fato, uma ala “germanófila” no Estado Novo, que atendia as demandas nazistas, então a documentação alemã corrobora essa teoria, certo? Errado. Os documentos emitidos pela embaixada do Reich no Rio de Janeiro mostram justamente o contrário.

Por outro lado, não há dúvida de que a diplomacia norte-americana tenha pressionado violentamente o governo Vargas para que o Brasil entrasse na guerra a seu lado, mas a razão do posicionamento brasileiro foi outro. Nos anos 40, a responsabilidade pelo afundamento dos navios brasileiros foi atribuída aos EUA pela propaganda nazifascista. Essa teoria conspiratória foi definitivamente enterrada no começo dos anos 70, quando o Grande-Almirante Karl Dönitz, comandante da Força de submarinos alemã, escreveu suas memórias assumindo a responsabilidade pelos ataques. Contudo, esse mito foi recrudescendo ao longo dos anos, desta vez motivado por um viés antiamericano.

Por fim, tais versões equivocadas originam-se da mera repetição de estudos pregressos superficiais, temperados por reducionismos de cunho ideológico. Felizmente, a História real é muito mais complexa, rica e interessante do que o ideário reducionista pressupõe.

O U-156 e o U-507 (ao fundo) resgatam sobreviventes do Laconia em 1942

Rodrigo Trespach – Se o U-507 não tivesse torpedeado os navios brasileiros em agosto de 1942, o Brasil teria entrado na Segunda Guerra?

Durval Pereira – Caso o U-507 não torpedeasse os navios brasileiros em agosto de 1942, o Brasil dificilmente entraria em guerra contra o Eixo a curto ou médio prazo. É provável que Vargas seguisse o exemplo da Argentina, cujo governo declarou guerra à Alemanha faltando poucos dias para o término da guerra. Dada a situação política interna à época, somente um episódio de grande repercussão junto à opinião pública seria capaz de arrancar o país da neutralidade oficial.

De forma paradoxal, o ataque alemão foi de suma importância para o esforço de guerra Aliado. Graças ao capitão do U-507, os Aliados obtiveram o controle do estratégico vão intercontinental entre a África e as Américas — a “Cintura” do Atlântico — num momento crucial do conflito, quando o Eixo avançava vitorioso em quase todos os teatros de operações. Conforme o livro mostra em detalhes, a declaração de guerra brasileira teve um papel da mais alta relevância para a mudança do curso da II Grande Mundial a favor dos Aliados.

Cabe lembrar que esta não é uma conclusão inédita. Muito pelo contrário. A importância do papel brasileiro foi expressa em documentos oficiais, memórias e diários pessoais de três proeminentes autoridades norte-americanas durante o conflito: o Presidente Franklin Delano Roosevelt e os Secretários de Estado Cordell Hull e Edward Stettinius, Jr. Sem a ação do U-507 contra o Brasil, a história da Segunda Grande Guerra teria sido muito diferente da que conhecemos hoje — certamente para pior.

Rodrigo Trespach – E a participação da colônia alemã? Também é muito difundido que os teuto-brasileiros apoiavam a Alemanha. E muitos sofreram com as repressões.

Durval Pereira – Há mais propaganda enganosa do que fatos sobre essa questão. À época da guerra, a maioria dos teuto-brasileiros guardavam suas tradições ancestrais com orgulho e queriam levar suas vidas em paz, longe dos problemas políticos e econômicos que levaram seus pais e avós a imigrarem para o Brasil. Sem dúvida, a repressão do governo atingiu a colônia alemã, mas ela ficou restrita a uma parcela ínfima desse contingente. O governo atuou com energia contra os fanatizados pela ideologia nazista, que insistiram em prosseguir nas suas atividades mesmo após o Estado Novo colocar todos os partidos políticos na ilegalidade.

Muito se fala no apoio da colônia alemã à Alemanha nazista, mas pouco é dito sobre a sua participação nos quadros da FEB. Contudo, ainda há testemunhas oculares desse tempo. Quem hoje visita a cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais, pode encontrar o Major Ivan Esteves Alves, veterano de guerra como sargento do III Batalhão do 11º Regimento de Infantaria. Ele conta que nos anos 1940, por ocasião da mobilização para a guerra, chegaram à cidade mineira grupos de jovens descendentes de alemães que sequer falavam o português. A diferença de línguas não impediu que esses homens lutassem com coragem na Itália, onde muitos deles foram feridos e vários mortos combatendo pelo que consideravam a verdadeira Pátria: o Brasil. A contribuição dos teuto-brasileiros para o esforço de guerra contra o Eixo é algo que merece ser mais conhecido e valorizado.

Rodrigo Trespach – Durval, obrigado pelo entrevista, extremamente proveitosa. Desejo sucesso com o livro.

Compre o livro Operação Brasil no site da Editora Contexto.

Rodrigo Trespach – www.rodrigotrespach.com

Curta e compartilhe com amigos e interessados. Obrigado!