O furo da bala

Manoel Antônio Francisco, o “seu Maneca”, era daqueles que não perdia a oportunidade de pregar uma peça nos amigos. Gente simples, não sabia ler. Era agricultor e carpinteiro. Trabalhava na construção de casas e em engenhos de mandioca, conhecimento que era herança do velho pai. Na roça, plantava além do alimento que ia para a mesa da família, a mandioca que era moída no engenho e depois vendida, geralmente para Severiano Melo, grande comerciante da região de Araranguá, em Santa Catarina, onde seu Maneca vivia com a família. E era uma família grande, ele tivera onze filhos com a mulher Constantina Joaquina.

O cunhado José Fernandes era o amigo de toda hora, companheiro das rodas de lenço, assim como o sogro, o velho Dindinho. Os Francisco tinham em alta estima a família Fernandes e a recíproca era verdadeira. Não era à toa que os filhos de Dindinho haviam sido padrinhos de muitos filhos de Antônio Francisco, o pai de Seu Maneca.

Lá pelo início da década de 1940, Manoel Antônio e aquela gente pobre do Fundo Grande levava a vida como seus pais e avós haviam levado. Ainda usavam o carro de boi como meio de transporte e jantavam à luz da pixirica, uma lamparina alimentada com querosene. O trabalho na roça e o trato com os animais ocupavam o dia todo, do clarear ao anoitecer. Do porco extraiam a carne e a banha usada na cozinha. O gado era usado como transporte, além de fornecer a carne e o leite. Uma lata com banha de porco era usada para o armazenamento da carne, a geladeira daquele tempo. Da guerra além-mar pouco sabiam ou sequer haviam ouvido falar, fazia parte de um mundo que não era deles.

Próximo à casa da família moravam Manoel Josina e Mariquinha. Um casal novo, “moderno”, que vivia numa casa simples, de pau à pique. Não haviam casado conforme as leis da igreja e andavam aos beijos e abraços à vista de toda a cidade. Situação que chocava a sociedade católica tradicional e conservadora da época.

Ao sair do trabalho no engenho de farinha Manoel Josina fazia todo o dia o mesmo percurso. Percorria quase três quilômetros entre o engenho e a casa, no Fundo Grande. Uma estrada estreita que cortava um mato alto, de canela, e uma grande roça de milho, mandioca e feijão. Mariquinha ia sempre ao seu encontro, dona de casa que era, fazia questão de agradar o marido. Seu Maneca e o cunhado José Fernandes achavam todo esse assanhamento um desrespeito. Algo estava errado e havia de mudar. Depois da missa de domingo, quando o casal de namorados fora o centro da conversa na porta da igreja, decidiram que fariam algo. Seria naquela semana.

Como combinado previamente, os dois compadres saíram do trabalho na roça mais cedo naquela sexta-feira a fim de chegar à estrada do Fundo Grande antes que Manoel Josina e a mulher. Foram preparados. Seu Maneca carregava à tiracolo a arma que fora de seu pai, uma “das antigas”, usada para caçar passarinho no mato. Naquela época não faltavam o aracuãs, nhambus, macucos e pombas. José Fernandes carregava às costas o bodoque feito de cutia. Com quase um metro de envergadura funcionava como o arco e flecha, porém, lançava pequenas pedras ou pelotas, feitas de barro ou sementes, como a canemeira.

Com o passo apressado chegaram logo a um capão próximo à estrada. Tiveram tempo de se esconder e acertar os últimos detalhes. A velha espingarda – quem sabe onde fora usada antes, naquele mundo de revoluções que haviam sido as décadas passadas? – foi carregada ali mesmo, como se estivesse a esperar por tropas inimigas ou passarinhos menos cuidadosos. A pelota foi tirada de um saco que Fernandes trazia no bolso esquerdo da calça. De barro, fora feita na noite anterior, em volta do fogão à lenha, enquanto saboreava um café de cambona e se jogava conversa fora.

O silêncio só era quebrado pelo cantar dos passarinhos que chegavam à tardinha para o pouso na copa das árvores altas do mato de canela. Os dois homens que ali estavam sentados, bem acomodados no capão que haviam escolhido como lugar ideal para o que iriam fazer a seguir, apenas se entreolhavam. Já haviam decido e sabiam exatamente o que fazer.

Viram quando Mariquinha passara em direção ao engenho onde o marido trabalhava. Não tardariam a passar de volta, aos beijos e abraços.

Alheios ao que os esperava, Manoel Josina e Mariquinha vinham de mãos dadas pela estrada contando um ao outro o que se passara durante o dia. Nada de novo, pouca coisa poderia mudar na vida que levavam. Há tempos Manoel Josina ansiava por coisa melhor, mas assim iam levando até que alguma oportunidade surgisse.

Quando a distância entre o casal e o capão em que estavam, chegou a um tiro de bodoque, Seu Maneca e José Fernandes se prepararam. A velha espingarda foi engatilhada e o bodoque de cutia esticado.

Manoel Josina e Mariquinha se aproximavam. De repente, o barulho da arma ecoou no ar e uma pelota de barro cruzou a estrada atingindo em cheio o franzino Manoel Josina, um pouco abaixo das costelas. Atônito, caído no chão, sem saber o que lhe atingira, Manoel gritou desesperado, com a voz fanha que lhe era característica: – Veja Mariquinha, onde está o furo da bala?

Enquanto o casal se recuperava do susto, a dupla que se escondia no capão a beira da estrada cruzou a roça de milho em direção ao Fundo Grande, sem serem vistos e sem deixar rastro. O riso contido foi solto muito longe dali e a história foi repetida muitas vezes para filhos e netos ao redor do fogão à lenha, nas noites frias de inverno. Manoel Josina e Mariquinha nunca mais foram vistos aos beijos e abraços em público.

Por Rodrigo Trespach
Texto publicado na Antologia IV da AELN, 2014, p.123-126. 

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